quarta-feira, 18 de abril de 2012

Bibi: uma garotinha de 89 anos no palco

Fernando Molica

O Dia

      Rio -  Na introdução do espetáculo, uma doce ironia: Bibi Ferreira sobe ao palco do Teatro Net Rio ao som de ‘Malandragem’ (Frejat-Cazuza), canção em que Cássia Eller dizia ser, quem sabe, uma garotinha. Às vésperas dos 90 anos, Bibi está longe de uma garotinha, mas não perdeu o humor. Logo no início do show, revela um episódio de sua vida e o situa no século 17.
      Não é garotinha, mas no palco, de pé diante do microfone, não tem nada de velhinha. A voz continua jovem, clara e potente, capaz de acompanhar a orquestra em perigosos graves e em audaciosos agudos.
      Ao longo de uma hora e quinze minutos, ela conta histórias e apresenta clássicos da música brasileira e       internacional, entre eles, temas de ‘Hello Dolly’, ‘O homem de La Mancha’ e ‘Gota d’água’. E ainda brinca com óperas como o ‘Barbeiro de Sevilha’ — Bibi troca a letra de forma proposital, o que não a livra de percorrer todas as notas da partitura. Em outro momento, sem qualquer mudança de figurino ou de maquiagem, Bibi, atriz, fica a cara de Edith Piaf ao cantar algumas suas canções. “Ela (Piaf) me sustenta há 27 anos”, ressalta, entre risos. Não é preciso condescendência para gostar do espetáculo. Não é necessário dar qualquer desconto pelo fato de a estrela ter 89 anos. Quem se apresenta é uma artista cujo talento não requer paternalismo — como ela tem dito, está ali trabalhando, o teatro é seu ganha-pão. Rigorosa, não admitiria apresentar-se ao público sem condições.
      Terminado o show, ela volta ao palco para receber uma nova leva de aplausos. Agradece, elogia a plateia e retorna aos bastidores, apoiada em seu empresário. Neste momento é como se a Bibi artista — aquela, de idade indefinível — desse lugar à senhora Abigail Izquierdo, uma quase nonagenária. A segurança demonstrada em cena é trocada por passos cuidadosos, as mãos buscam apoio nos braços de seu acompanhante. A cena apenas reafirma o talento da atriz capaz de interpretar uma mulher muito mais jovem.A vida é amiga da arte, disse Caetano Veloso.
      Em 1923, um ano depois do nascimento de Bibi, a sinfonia ‘Vigília d’armas’, composta por Julio Reis (1863-1933), foi ouvida pela última vez num palco. Amanhã, às 19h, a peça será executada pela Orquestra Sinfônica UniRio regida pelo maestro Branco Bernardes. O concerto será na Sala Villa-Lobos, na Avenida Pasteur 436, fundos. A entrada é franca.

Fernando Molica é jornalista e escritor |

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O lamento de não ser negro

Por Tim Adams

The Observer


      Em 2005, o diretor Kevin Mcdonald estava trabalhando em Uganda em seu filme O Último Rei da Escócia. Nas favelas de Kampala, ele ficou intrigado por um fato curioso: parecia haver imagens de Bob Marley, slogans “Get up, stand up” [Levante-se, erga-se] e dreadlocks [tranças finas e longas nos cabelos] em todos os lugares aonde ele ia.
      Marley já estava na mente de Mcdonald, de qualquer modo: ele havia sido indagado por Chris Blackwell, fundador da Island Records, se estaria interessado em participar de um projeto de filme sobre o duradouro legado do músico jamaicano.
Foto: Garry Knight/Flickr

      O plano original era acompanhar um grupo de rastafáris em sua jornada de Kingston até sua pátria espiritual na Etiópia, para participar de uma comemoração do 60º aniversário do nascimento de Marley. Afinal esse filme nunca foi feito, mas quando surgiu a oportunidade de Mcdonald fazer um documentário mais ambicioso sobre Marley ele a agarrou.
      Crucialmente, o filme tinha a bênção e o apoio da família Marley e de figuras chaves em sua evolução musical, incluindo o há muito afastado Wailer original, Neville “Bunny” Livingstone. “Parecia muito importante fazer esse filme agora, enquanto algumas pessoas que conheceram melhor Bob, especialmente nos primeiros anos, ainda estão aqui para contar”, diz Macdonald.
      Ele passou a reunir entrevistas e a pesquisar alguns dos aspectos mais misteriosos de uma vida muito mitificada, que terminou de modo trágico e prematuro em 1981, quando Marley tinha apenas 36 anos.
      Houve frustrações para Mcdonald, como a quase total ausência de gravações ou fotos dos anos de formação de Bob Marley and the Wailers. Mas com persistência e as ricas memórias sobre o período narradas por Livingstone, a viúva de Marley, Rita, e outros ele montou o filme biográfico.
      Durante sua vida Bob Marley relutou em dar entrevistas. “Tendo pouca educação formal”, sugere Macdonald, “ele se sentia desconfortável ao ser interrogado por jornalistas.” De qualquer modo, havia aspectos de seu passado em que ele não queria tocar, especialmente seus sentimentos sobre seu pai branco e ausente, Norval Marley, um homem que afirmava ter sido um capitão do exército colonial do Caribe, mas que não foi.
      De certa maneira, no filme o “capitão” Norval torna-se chave para compreender Marley. Como diz Macdonald, “muitas pessoas supõem que Bob era negro e ficam surpresas ao descobrir que seu pai era branco”. O preconceito associado a esse fato na remota aldeia natal de Marley, Nine Miles, nas montanhas da Jamaica, ajudou a formar a poderosa busca de identidade que ele descobriu no rastafarismo [seita originária da Jamaica cujos membros veneram Hailé Selassié como o salvador e consideram a África, especialmente a Etiópia, como Terra Prometida; o nome deriva de "Ras Tafari", antigo nome de Hailé Selassié].
      As contradições de sua biografia foram traduzidas em uma metáfora global extremamente sedutora de luta e união: “Let’s get together and feel all right” [Vamos ficar juntos e estaremos bem].
      “Eu estava dando entrevistas com Ziggy Marley outro dia”, diz Macdonald, “e ele falou sobre seu pai: ‘Eu acho que Bob sempre lamentou o fato de não ser negro’.”
      “Eu não colocaria isso em termos tão decisivos, mas acho que é uma chave para sua psicologia e sua música. Ele sempre foi o forasteiro, e descobriu em sua vida e sua música uma maneira de redimir esse fato.”
      Essa redenção também forneceu a Macdonald parte da resposta de por que Marley tinha um enorme significado não apenas nas favelas de Uganda, mas entre os despossuídos do mundo inteiro. Seu filme termina com uma sequência de referências contemporâneas ao cantor entre movimentos políticos populares. “Na Tunísia no início da Primavera Árabe as pessoas cantavam ‘Get up, stand up’“, diz Macdonald. “Imediatamente depois que o vendedor de frutas se incendiou, dando início à revolução, esse era o slogan escrito no muro perto de onde ele morreu.”
      Essa influência pode ser medida de muitas maneiras: três décadas depois de sua morte, Marley tem 30 milhões de seguidores no Facebook.

Leia mais em http://www.guardian.co.uk/

terça-feira, 3 de abril de 2012

No coração da floresta

Orlando Margarido, Carta Capital


      A imagem do índio que encara a câmera, altivo e desafiador, é talvez a mais pungente que se tenha visto no cinema brasileiro recente. Não é pouco quando lembramos dos bons documentários de nova safra que têm surgido sobre o tema indígena no País. Mas a cena pertence a uma ficção, ou melhor, presta-se a ela porque reconstituída a partir de um esforço real. Para o diretor Cao Hamburger, a visão desse guerreiro solitário foi decisiva desde o início para realizar o seu Xingu, com estreia prevista para 6 de abril. Tanto assim que ele ponderou então apenas precisar dar conta de uma história para justificar o rosto imóvel que tanto o marcou e por certo marcará o espectador.
      Um exagero, claro, na medida em que essa narrativa trata nada menos que a aventura dos irmãos Villas-Bôas na aproximação com as tribos distantes e intocadas, e a consequente demarcação do Parque do Xingu, que comemorou seu cinquentenário em 2011. Hamburger, realizador afeito aos núcleos dramáticos econômicos que representam todo um contexto histórico, como em O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), nos propõe menos um olhar épico ou incensador habitual a filmes do gênero e mais um trato intimista calcado na relação dos três irmãos. Sim, porque há um trio que talvez a história oficial não tenha se esforçado em atentar, deixando Leonardo, ou mesmo Cláudio, à sombra de Orlando Villas-Bôas. “Minha geração parece ter esquecido dos sertanistas ou mal chegou a conhecer suas personalidades distintas, enquanto meus filhos nunca tinham ouvido falar deles”, aponta em entrevista a CartaCapital o diretor de 50 anos e filhos na faixa dos 20. Idade similar à que os Villas-Bôas tinham quando se lançaram ao Brasil Central.
      Esta foi uma referência essencial quando Cao Hamburger recebeu a proposta do sócio Fernando Meirelles na O2 e de Noel Villas-Bôas, filho de Orlando, que levou a ideia à produtora. “Tínhamos ali um elo interessante, pois, se a preocupação desses cientistas era a preservação dos índios, agora se tratava de preservar a memória de quem lutou por eles.” De início titubeou, e foi pesquisar para descobrir que a literatura sobre os Villas-Bôas é rara, não mais do que algumas lembranças familiares, relatos de episódios pitorescos que contribuíram, por fim, além de biografias festivas. O desinteresse o intrigou e tornou-se o impulso inicial para seu próprio esclarecimento. “Não dá para entender a razão de se esquecer de quem mudou o paradigma da política indigenista no País. Era um momento daquele Brasil que deu certo.”
      Mas, desde o início também, o diretor refletiu sobre o lado reverso do projeto, aquele apontado para a riqueza indígena que da mesma forma, acredita, passa ao largo do dito Brasil civilizado. Ele diz ter se dado conta durante o levantamento do material e da realização de um preconceito em relação aos índios que parece ter se mantido no tempo. Desse espelhamento entre a obra dos Villas-Bôas, a representação da complexidade e sofisticação cultural dos índios e o que deles pode ser absorvido por nós surgiu para Cao o saldo mais valioso a ser efetivado por seu filme. “Creio que por isso a imagem daquele índio me bateu tanto. Ele nos olha, nos provoca como um espelho.”
      Denota-se daí o fato de o diretor ter adotado um registro mesmo convencional, mas caprichado na fotografia de Adriano Goldman e montagem de Gustavo Giani, para contar ao público a empreitada dos irmãos, num tom de espírito aventureiro que verdadeiramente os movia. Mas, igualmente, sem a aura de heroísmo, revela sua experiência com críticos e opositores, suas passagens malogradas e questionáveis. O diretor sabia estar se metendo num vespeiro de conflitos e polêmicas infindáveis e manteve-se longe de julgamentos, costurando sua trama pela linha dos fatos. Assim, desde a primeira viagem de Cláudio e Leonardo, em 1944, a quem se juntará mais tarde Orlando, na expedição batizada de Roncador-Xingu, a opção é balizar a versão do filme pelas decisões e iniciativas do trio em detrimento de suas negociações com o governo de cada época. Até 1961, ano de sanção, pelo presidente Jânio Quadros, do Parque Nacional do Xingu, depois Parque Indígena do Xingu, os exploradores terão de lidar com dois mandatos de Getúlio Vargas e os de Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek, entre outros ocupantes de rápida passagem na Presidência da República. A aventura não findará com a criação da reserva, e os irmãos terão enfrentamento mais difícil com os militares.
Guerreiros solitários. Hamburger e os irmãos, retratados ficcionalmente em Xingu. Foto: Beatriz Lefevre

      Cao concorda que para uma geração que cresceu na ditadura era razoável supor serem eles homens aliados aos governos militares, figuras encarregadas de levar um ideal de conquista e civilidade Brasil adentro. “Mas os Villas-Bôas mantinham seus ideais acima de tudo e não se importavam em negociar com quem quer que fosse para atingi-los. Eles respeitavam o Marechal Rondon, seu mestre, mas não hesitaram em ir contra seus ensinamentos por terem uma opinião diferente.” Essa postura poderia chegar à rivalidade mesmo entre os três. Um dos princípios em que o filme se sustenta, se não o principal, é o das personalidades diversas dos irmãos, o que terá seu peso no desenrolar dos acontecimentos. Orlando, o mais velho e papel de Felipe Camargo, nos é apresentado como o articulador hábil entre as necessidades do projeto e o governo, mantendo longe os interesses externos. Protegido deste é Leonardo (Caio Blat), caçula entusiasmado e voluptuoso, cujo traço irresponsável é confrontado por Cláudio (João Miguel), idealista e determinado, que não aceita contemporizar em seus objetivos.
      Será ele a podar Leonardo do projeto quando este se envolve com uma índia camaiurá e a engravida, numa relação complexa para sua tribo, enviando-o ao Sul, onde morrerá, em São Paulo, em 1961. O episódio se manterá traumático e de dura recordação para Cláudio, ele mesmo depois personagem de um relacionamento com uma índia. Cláudio é também o escolhido pelo diretor para ser o narrador do filme, no formato do diário que se tornaria célebre mais tarde. Um tanto reiterativo, o recurso tem a intenção de promover maior aproximação da aventura com o espectador, contextualizando-o, a partir do princípio de que o feito dos irmãos ficou na história longínqua.
      A marcha para o Oeste que nos traz Cao tem também sua função idealista em um momento no qual se procura debater iniciativas como a sustentabilidade possível em questões como a da Amazônia. Talvez tenha sido nessa configuração a leitura do filme pela plateia internacional do Festival do Berlim, onde foi exibido em fevereiro, conquistando um terceiro lugar na preferência popular na mostra Panorama. Cao não havia se dado conta até então de que, do exotismo de que eram vítimas cinematografias como esta em que Xingu está inserida, passou-se a um olhar e interesse mais maduros, aceitação que testará também em abril no Festival de Tribeca, em Nova York. Acredita que seu projeto chega ainda num período especialmente feliz para o País no exterior, que tem como mão contrária uma elevação da autoestima do brasileiro. “Os desafios enfrentados por esses homens, que não enxergavam limites em seus ideais, deveriam ser resgatados como valores para hoje.”
No alvo. No filme, o espectador assimila a aventura vivida na floresta. Foto: Beatriz Lefevr

      Cao Hamburger valeu-se de especialistas para engendrar o roteiro com Elena Soarez e Anna Muylaert, a exemplo da antropóloga e diretora Maíra Bühler e do documentarista de origem inglesa Adrian Cowell. Este, morto em outubro de 2011, foi assíduo parceiro dos Villas-Bôas. Uma das desafiadoras missões em questão que os uniu partiu de Juscelino Kubitschek quando o presidente pediu aos sertanistas que demarcassem o centro geográfico do Brasil. A viagem de 1958 a terras indígenas de Mato Grosso, dentro do atual Xingu, é tema do documentário Coração do Brasil, em exibição no Festival É Tudo Verdade na sexta-feira 30, às 21 horas, e no sábado 31, às 15 horas. No filme dirigido por Daniel Solá Santiago, com preciosas imagens dos irmãos, a aventura é refeita em 2008 com alguns dos integrantes originais, como o explorador Sergio Vahia de Abreu, o cacique Raoni e o próprio Cowell, que dá seu depoimento comparando os períodos.
      Impressiona se tomarmos os dois momentos em comparação no filme às transformações sofridas nos hábitos desses povos da floresta, que são simbolizadas numa dança de improviso dos índios vestidos com roupas ocidentais e grifes. “Índio não é mais aquele de antes, não é bobo, agora estuda”, diz uma liderança no documentário, ao negociar um barco e suprimentos em troca da filmagem. Esse caso exemplifica o espelho a que se refere Cao, condição também imortalizada no trabalho fotográfico de Pedro Martinelli em suas conhecidas expedições à Amazônia. É ele o autor da imagem do índio solitário que tanto impactou Hamburger.
      Assim como os Villas-Bôas no universo indigenista, Martinelli foi o primeiro fotógrafo a registrar o encontro com um crenacarore, hoje a etnia panará, nos anos 70. O profissional flagrou o rosto com um esboço de sorriso. Mas o crenacarore do filme mantém-se sério, e a opção por não rir, lembra Hamburger, justifica-se apenas pelo fato de o índio escolhido usar um aparelho dentário. Sinal dos tempos, que Xingu também quer espelhar.