Em recente almoço com o literato e etimólogo Deonísio da Silva e o latinista padre Pedro Paulo Alves dos Santos, dissera-lhes que não só pelo fato de ter escrito A igreja do Diabo o magistral Machado de Assis poderia pleitear a posição de maior contista da língua portuguesa, de vez que tantas obras-primas carregariam a assinatura de sua pena autoral. Todavia, expus-lhes que, embora o mestre fluminense fosse o responsável pelo antológico registro que ficcionaliza uma espécie de duelo dialético entre Deus e a demoníaca figura que intitula o conto machadiano, o magistral A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, disputaria, quiçá em patamar de igualdade, o título de mais extraordinário ensaio ficcional do gênero na história da literatura brasileira.
Em A hora e a vez..., a narração retrata a saga de um mandatário que, após perder família e propriedade, transformar-se-ia em convicto cristão solidário, disposto a ir para o céu nem que fosse “a porrete”. O enredo se alicerça na promessa de salvação feita pelo protagonista Nhô Esteves a um religioso que, chamado para lhe dar a extrema-unção, se deparara com um espírito atormentado a arrotar bazófias e esconjuros. Ao vislumbrar uma fresta de luz, o moribundo se comprometeria a modificar o percurso abarrotado de iniquidades e devassidão. Ao se recuperar das fraturas causadas pelas bordoadas dos capangas inimigos, Matraga resolvera se estabelecer num sítio longínquo com o casal de negros samaritanos que o acudiu em sua santa expiação.
N’A igreja do Diabo, um manuscrito beneditino relata que, ao solicitar uma audiência com Deus por estar cansado de sua desorganização, a luciférica personagem anunciaria, a pleno pulmões, que construiria uma “hospedaria barata” para agregar os discípulos malignos que se dispuserem a segui-lo. E exemplifica que a única demonstração de sentimento ao próximo consentida pela seita satânica seria a de “amar a mulher do próximo”.
É fato que, para impressionar a presença opositora, o maquiavélico Lúcifer lançou mão de uma sofisticada metáfora para ilustrar a sua mirífica ideia: “— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...”.
Diante de sutil retórica, ao benévolo Criador não coube contestação que amainasse o afã de fundação da facção religiosa imposta por um líder que, inclusive, se gabara de não ter de enfrentar Maomé nem Lutero. Neste ínterim, na contramão das proposições malignas, um indivíduo de estúrdia natureza se danava a labutar de sol a sol até a chegada ao arraial do temível Joãozinho Bem-Bem que, de imediato, lhe devotara apreço, a ponto de, ao fim da estada, indagar se haveria mágoa que lhe instasse reparação. O justiceiro, involuntariamente, restauraria um passado amortecido pelo período de jejum social, que tanto aproximara o antigo pecador do paraíso celeste...
Contudo, perante tal resignação o bando se despede dizendo-se atento a um pedido de desagravo moral ou vingança por parte do sitiante. Logo a seguir, enfastiado, o beato Matraga prossegue, em bíblica montaria, a caminho do fatídico reencontro com Joãozinho Bem-Bem. Diante de um entrevero, com audácia e valentia, enfrenta o cangaceiro-mor Bem-Bem; e, ao aniquilá-lo, recebe o chamado divino pelas mãos dos jagunços, santificando-se por salvar da desgraça uma indefesa família do interior de Minas Gerais.
De outra feita, a próspera empreitada do intrépido Belzebu ameaçou ruir, justo quando o pastor malfazejo se apercebera de que os mais assíduos seguidores do seu apostolado, às escondidas, praticavam boas ações. Atônito, ao recorrer aos Céus o Cujo recebera a seguinte justificativa divina: “— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.
Satisfeitos com a ceia e o vinho, refletíamos sobre as sutilezas filosóficas; e, abismados, descobríamos que a retórica dos mistérios se instaura às terceiras margens de um mítico esboço de humanidade aventado pela luz da criação literária de Machado e Rosa.
*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa).
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